Crônica - Dolce far Niente
Eu sempre fui uma criança curiosa: devorava livros, queria aprender sobre tudo e fiz um monte de coisas na minha vida profissional; quase uma Barbie e suas dezenas de profissões. Entre todas as coisas que desejei e planejei, nunca passou pela minha cabeça que o meu maior prazer da vida, ao chegar nos 40, fosse: cuidar dos meus cachorros e ficar em silêncio na minha casa, no meio do mato, onde o vizinho mais próximo só fosse possível avistar de binóculos. Isso é, se eu realmente quisesse vê-lo.
Mas
sei que antes eu não tinha esse modelo ideal de vida, porque antes eu não tinha
conhecimento suficiente sobre ela. Os livros me ensinaram muita coisa, mas, viver,
me ensinou muito mais. Principalmente sobre os valores com os quais fui
educado, em confronto com os valores que eu descobri não serem condizentes com
àqueles que aprendi. Desfrutei muito do dinheiro – e aqui não serei hipócrita: uma
vida em silêncio e sem vizinhos custa caro –, acumulei roupas de grife, onde
muitas nunca usei; gastei muito para parecer o mais próximo com o personagem
que a sociedade esperava de mim. Usufruí muito bem do sistema, e foi muito bom
enquanto durou. Mas, ainda bem, descobri a tempo, as coisas que mais me dão
prazer.
Ontem
acordei, comprei sonhos com recheio de Nutella e pães de queijo; enquanto os pesava,
minha atendente - fã número um da padaria - disse que não gostou de saber que
estou indo embora pra longe dela. Ao passar no caixa, a moça da máquina registradora
perguntou o porquê que só iria levar aquilo, finalizando a pergunta me chamando
de Zorro - meu apelido no mercado inteiro, onde vou todos os dias.
Voltei pra casa, coloquei meus cachorros no carro e, na estrada, dirigia ouvindo
Bocelli enquanto pensava, que finalmente, havia conseguido conquistar tudo o que
há pouco tempo comecei a desejar na vida; me questionando o porquê, aquele não
teria sido meu sonho desde criança.
Cheguei
ao sitio, colhi alimentos na horta pra preparar o jantar da noite, brinquei com
a mangueira com o meu caçula, enquanto regava a horta e, logo após, fui
providenciar o vinho e a sobremesa. Enquanto preparava o molho, escutava um
podcast sobre crimes; depois jantei na companhia dos meus filhotes, enquanto
assistia a um filme italiano em preto e branco. Por fim, recebi a visita de uma
leitora, para discutirmos sobre meus livros e meus textos. Hoje, acordei com o dia
livre: sem visita, sem TV, sem empregados, refletindo sobre estar vivendo o momento
ideal da minha vida. Lembrei de um texto que havia escrito nas primeiras férias
absolutas que tirei na vida - há poucos meses - e, em vez de editá-lo, quis escrever
outro no mesmo sentido, mas atualizado com aquilo que no texto anterior, ainda
era apenas um plano.
O
cenário mudou, mas só se tornou possível porque, bem antes, eu já vivia o que
queria. Não espere que o que você quer
defina quem você é. Antes mesmo do lugar ideal, nos lugares “errados” eu já
estava vivendo - com plenitude - aquilo que eu era. Não permiti que os cenários
e personagens anteriores definissem o que eu era em minha essência. E agora, com
tudo em seu devido lugar, eu só quero acordar nesse cenário onde optei por instalar
internet apenas para o uso necessário, sem mais smartphones, apenas um aparelho
de celular antigo capaz de fazer ligações para a emergenza ou polizia;
ficar na cama por mais uma hora após despertar, na companhia dos meus
filhotes; tomar uma dose de whiskey em jejum, enquanto olho para o campo e
agradeço por não ouvir nenhum som de música pop; andar de meias e moletons
folgados pela casa; não pentear os cabelos; sentar na varanda enquanto interpreto
as imperfeições das pedras que estruturam as paredes da casa, imaginando
monstros e objetos; comer porcaria; deixar as xícaras de café sujas pelos cômodos;
sentar no escritório para escrever - com o caçula deitado sobre meus pés; e, por
fim, talvez ter 30 minutos de conexão com o mundo, conversar qualquer amenidade
com um amigo querido, e depois dizer a ele que podemos ter outra conversa como
aquela, um mês depois; ou, receber a pessoa com quem escolhi namorar para
jantarmos, passarmos à noite juntos e, na manhã seguinte, ela voltar pra casa
dela.
Se
posso desejar mais alguma coisa? Sim. Que essa seja a última vez que alguém
possa ter conhecimento de qualquer intimidade ou curiosidade sobre a minha vida
pessoal; e que, em um futuro próximo, quando alguém perguntar: “Cadê aquele
rapaz que vinha aqui todos os dias comprar as mesmas coisas na padaria... o Zorro?”,
outro alguém responda: “Ele subiu em seu cavalo, saiu galopando, e se foi. Mas
foi embora feliz.”
P.S.:
Obrigado moças da padaria. Assim como o próprio Zorro, nas histórias em
quadrinhos, vocês não sabiam quem eu era, e nunca demonstraram interesse em
perguntar quem era o homem que todos os dias comprava pão de calabresa. Mas, ainda
assim, vocês me davam, diariamente, doses daquilo que a gente, muitas vezes,
esperamos que pessoas que nos conhecem, nos deem. E talvez eu deixe de ser o Zorro
com seu característico bigode, pois aqui, no meu refúgio, não precisarei fazer
mais nada pra agradar a alguém. sempre fui uma criança curiosa: devorava livros, queria aprender sobre tudo e
fiz um monte de coisas na minha vida profissional; quase uma Barbie e suas dezenas
de profissões. Entre todas as coisas que
desejei e panejei, nunca passou pela minha cabeça que o meu maior prazer da
vida, ao chegar nos 40, fosse: cuidar dos meus cachorros e ficar em silêncio na
minha casa, no meio do mato, onde o vizinho mais próximo só fosse possível
avistar de binoculo. Isso é, se eu realmente quisesse vê-lo.
Mas
sei que antes eu não tinha esse modelo ideal de vida, porque antes eu não tinha
conhecimento suficiente sobre ela. Os livros me ensinaram muita coisa, mas, viver,
me ensinou muito mais. Principalmente sobre os valores com os quais fui
educado, em confronto com os valores que eu descobri não serem condizentes com
àqueles que aprendi. Desfrutei muito do dinheiro – e aqui não serei hipócrita: uma
vida em silêncio e sem vizinhos custa caro –, acumulei roupas de grife, onde
muitas nunca usei; gastei muito para parecer o mais próximo com o personagem
que a sociedade esperava de mim. Usufruí muito bem do sistema, e foi muito bom
enquanto durou. Mas, ainda bem, descobri a tempo, as coisas que mais me dão
prazer.
Ontem
acordei, comprei sonhos com recheio de Nutella e pães de queijo; enquanto os pesava,
minha atendente - fã número um da padaria - disse que não gostou de saber que
estou indo embora pra longe dela. Ao passar no caixa, a moça da máquina registradora
perguntou o porquê que só iria levar aquilo, finalizando a pergunta me chamando
de Zorro - meu apelido no mercado inteiro, onde vou todos os dias.
Voltei pra casa, coloquei meus cachorros no carro e, na estrada, dirigia ouvindo
Bocelli enquanto pensava, que finalmente, havia conseguido conquistar tudo o que
há pouco tempo comecei a desejar na vida; me questionando o porquê, aquele não
teria sido meu sonho desde criança.
Cheguei
ao sitio, colhi alimentos na horta pra preparar o jantar da noite, brinquei com
a mangueira com o meu caçula, enquanto regava a horta e, logo após, fui
providenciar o vinho e a sobremesa. Enquanto preparava o molho, escutava um
podcast sobre crimes; depois jantei na companhia dos meus filhotes, enquanto
assistia a um filme italiano em preto e branco. Por fim, recebi a visita de uma
leitora, para discutirmos sobre meus livros e meus textos. Hoje, acordei com o dia
livre: sem visita, sem TV, sem empregados, refletindo sobre estar vivendo o momento
ideal da minha vida. Lembrei de um texto que havia escrito nas primeiras férias
absolutas que tirei na vida - há poucos meses - e, em vez de editá-lo, quis escrever
outro no mesmo sentido, mas atualizado com aquilo que no texto anterior, ainda
era apenas um plano.
O
cenário mudou, mas só se tornou possível porque, bem antes, eu já vivia o que
queria. Não espere que o que você quer
defina quem você é. Antes mesmo do lugar ideal, nos lugares “errados” eu já
estava vivendo - com plenitude - aquilo que eu era. Não permiti que os cenários
e personagens anteriores definissem o que eu era em minha essência. E agora, com
tudo em seu devido lugar, eu só quero acordar nesse cenário onde optei por instalar
internet apenas para o uso necessário, sem mais smartphones, apenas um aparelho
de celular antigo capaz de fazer ligações para a emergenza ou polizia;
ficar na cama por mais uma hora após despertar, na companhia dos meus
filhotes; tomar uma dose de whiskey em jejum, enquanto olho para o campo e
agradeço por não ouvir nenhum som de música pop; andar de meias e moletons
folgados pela casa; não pentear os cabelos; sentar na varanda enquanto interpreto
as imperfeições das pedras que estruturam as paredes da casa, imaginando
monstros e objetos; comer porcaria; deixar as xícaras de café sujas pelos cômodos;
sentar no escritório para escrever - com o caçula deitado sobre meus pés; e, por
fim, talvez ter 30 minutos de conexão com o mundo, conversar qualquer amenidade
com um amigo querido, e depois dizer a ele que podemos ter outra conversa como
aquela, um mês depois; ou, receber a pessoa com quem escolhi namorar para
jantarmos, passarmos à noite juntos e, na manhã seguinte, ela voltar pra casa
dela.
Se
posso desejar mais alguma coisa? Sim. Que essa seja a última vez que alguém
possa ter conhecimento de qualquer intimidade ou curiosidade sobre a minha vida
pessoal; e que, em um futuro próximo, quando alguém perguntar: “Cadê aquele
rapaz que vinha aqui todos os dias comprar as mesmas coisas na padaria... o Zorro?”,
outro alguém responda: “Ele subiu em seu cavalo, saiu galopando, e se foi. Mas
foi embora feliz.”
P.S.:
Obrigado moças da padaria. Assim como o próprio Zorro, nas histórias em
quadrinhos, vocês não sabiam quem eu era, e nunca demonstraram interesse em
perguntar quem era o homem que todos os dias comprava pão de calabresa. Mas, ainda
assim, vocês me davam, diariamente, doses daquilo que a gente, muitas vezes,
esperamos que pessoas que nos conhecem, nos deem. E talvez eu deixe de ser o Zorro
com seu característico bigode, pois aqui, no meu refúgio, não precisarei fazer
mais nada pra agradar a alguém.
texto: Rômulo