O Capote dos Trópicos - Michel Alcoforado e os cisnes brasileiros

Em uma tarde no meio da semana, eu havia programado de gravar vídeos para o TikTok, para a divulgação do meu livro. Afinal, em 2025 - principalmente no Brasil - não basta ser escritor, médico ou engenheiro: é necessário ser blogueiro; ou praticamente você não tem uma carreira. Mas acabei desistindo e indo para o café mais badalado do vilarejo de luxo onde moro. Frequentado pelos locais bem de vida, aspirantes a bem de vida, e muitos turistas. Fui em bsca de um ambiente confortável para continuar lendo Coisa de Rico - A vida dos endinheirados brasileiros, primeiro livro do antropólogo Michel Alcoforado.  Assim que me sento, enquanto escolho o que pedir para acompanhar a minha leitura, observo o ambiente. À minha frente, uma mulher branca, alta, vestida de uma maneira discreta, mas elegante, com um lenço no pescoço. Seus cabelos eram quase totalmente brancos, mas certamente bem cuidados com shampoos que devem custar mais de R$300,00. Ao meu lado, um casal heterossexual - provavelmente de turistas. Ele, assistia a videos de BMW no TikTok; ela, editava suas fotos que provavemente tirou durante o dia, para exibir a sua possível felicidade a milhares de deconhecidos. Ambos, já estavam em um lugar incrível, com chances de viver coisas incriveís, mas estavam mergulhados em redes sociais, provavelmente imaginando como poderiam ser ainda mais felizes além daquele momento. 

A senhora elegante, com porte e comportamento de uma rica tradicional, seduziu a atendente negra, dizendo que houve um problema com o seu cartão de crédito, e que logo ela retornaria para resolver. Pediu que não se preocupasse, já que o valor era tão pequeno, e jamais ousaria trazer prejuízo ao estabelecimento, ou deixar a atendente em uma saia justa. Desconcertada, e sem saber o que dizer, mas provavelmente já habituada a tratar bem pessoas brancas com aparência de ricos de berço (porque foi treinada e ensinada culturalmente assim) a atendente apenas concordou, e teve o seu tempo roubado por aquela socialite, que começou a elogiar a cor de sua pele, seu cabelo, atrapalhando que a jovem atendesse outros clientes que estavam a espera, incluindo eu. Voltando ao casal ao lado, eles haviam pedido um prato muito bem apresentado, tiraram fotos e, em seguida, pediram para embalar. Foram embora sem prestar atenção à escada diante deles. Ele, ainda assistindo aos vídeos do carro que provavelmente ainda não possui; ela, já deveria ter atualizado o seu perfil no instagram, e estava checando se seu carrosel de fotos havia recebido curtidas o suficiente a altura dos esforços na edição. E partiram rumo a saída do café, trajando seus acessórios e roupas com logos de grifes aparentes.

Sorri sozinho, me sentindo um aprendiz de Michel Alcoforado, já que antes de ir à cafeteria havia lido metade do livro. Olhei para a mesa onde estava, enquanto meu pedido não chegava, antes de voltar ao livro, pensei em tirar uma foto dele na mesa para ilustrar essa postagem. Coisa de Rico estava sobre meu tablet da Apple, com a chave do meu carro ao lado, e um porta-cartões Aramis, com um único AMEX Black em um dos compartimentos. Após ver aquela disposição, refleti: o que Michel pensaria ao ver essa imagem? Que eu quis intencionalmente ser irônico? Que eu sou um novo rico? Ou simplesmente um rico tradicional, em posse natural daquilo que lhe pertence?

Como escritor, editor, e alguém que resenha  livros e filmes, eu poderia usar esse espaço para abordar vários pontos desse livro extremamente necessário. Mas acredito que, mais que isso, Coisa de Rico traz um espelho para todos nós: nosso sentimento, comportamento e posicionamento sobre a nossa consciência de qual lugar na pirâmide social-econômica ocupamos. Um livro onde não apenas os ricos tradicionais ou emergentes podem se enxergar, e se envergonharem de certos critérios criados e adotados por eles. É um livro para todos nós, onde de look Loro Piana ou Gucci, somos todos emergentes em uma visão geral. Sobretudo, nascidos em um país colonizado e extremamente desigual. 

Não importa seu sobronome - original ou inventado -, a nacionalidade do seu tataravô que chegou por aqui após a guerra, ou os diplomas que você conquistou em escolas de elite, todos nós, somos um pouquinho emergentes, e estamos tentando se sobressair diante dos coleguinhas na mesa ao lado. Ali naquele café em Trancoso, onde um pianista tocava músicas que pareciam saídas de um CD de trilha sonora de uma novela de Manoel Carlos, eu também era um dos personagens reais de Michel, tentando me sobressair diantes dos outros personagens: a suposta rica tradicional, que não tinha condições de para pagar a conta, e o casal viciado em tela; porque diferente deles, eu estava ali pra ler um livro. Escolhi uma mesa distante, para ficar em um ângulo onde todos poderiam ver e pensar: "Olha aquele homem elegante e intelectual, com seu óculos com armação de tartaruga, vestido com uma camisa vintage Givenchy de seda, pernas cruzadas, e um anel no midinho com a inicial do sobrenome da sua família."

Particularmente, não irei resenhar de modo tradicional Coisa de Rico. O primeiro livro do antropólogo do luxo merece ser lido como um manual de vida pra toda pessoa que busca um lugar ao sol -  principalmente no contexto material, econômico e social. Mas que também precisa entender mais da sociedade em que vive. É como um livro de etiquetas de Glória Kalil ou Danusa Leão, para todos que desejam se sair melhor nesse tabuleiro de xadrez que é a vida, onde todos - dos ricos de berços aos novos ricos - estão buscando se destacarem no meio; ainda que muitas vezes se esforçam demasiadamente para parecer que não estão querendo chamar atenção. 

Uma pesquisa elegante, bem traduzida para todos os tipos de leitores e curiosos sobre a vida dos ricos brasileiros; onde faz um serviço muito maior que apenas o da fofoca, como o escritor Truman Capote com as suas cisnes; e os desdobramentos dessas relações entre "os de fora" e "os de dentro". Diferente das consequências para o escritor americano, ao relatar a vida dos ricos nos Estados Unidos, Michel com certeza não só irá permanecer circulando nos salões que adentrou, como irá encontrar outras portas abertas por todos aqueles que precisam provar, nem que seja para si mesmos, quem são. Incluindo o personagem mais tóxico (na minha opinião) da pesquisa do Michel: um rico de cabelinho pra trás, correndo com seus guarda-costas no parque, enquanto deixa aquele que seria a maior referência do conceito de rico no Brasil dali a alguns anos, sentado na calçada em frente em sua mansão, o aguardando para uma entrevista de 20 minutos cronometrado; ao mesmo tempo que resiste aos assédios dos seguranças das mansões vizinhas, preocupado com aquele homem negro sentado em uma calçada, onde segundo as leis de qualquer municipio no Brasil, é uma via pública. 


Texto:
Rômulo André Álvares (agora assinando com meu nome composto e sobrenome pomposo, segundo dicas de Michel

Ilustração: Rômulo André Álvares

REF.:








Livro não ficção: Coisa de Rico - a vida dos endinheirados brasileiros

Autor: Michel Alcoforado

Páginas: 235

Editora: Todavia

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